Sei lá por qual raio de loucura resolvemos abandonar tudo e refazer a vida do outro lado do mundo, fixar a estaca verde e amarela há treze mil quilometros de casa, longe dos amigos e inimigos que fizemos, desvencilhando velhos hábitos e conselhos, acomodados quase sempre por empregos quadriculados em escritórios, viciados em números, lucros e cafés. Entenda, trabalhar é bom, ótimo, enobrece, mas deixo aqui o relato de uma nova experiência de vida. Talvez essa não seja a minha exclusiva história, talvez não seja também apenas a sua, mesmo sem te conhecer, presumo que nossas dúvidas, sonhos e medos sejam parecidos. Ainda hoje procuro saber a razão que me levou naquela manhã clichê de novembro, a tomar uma dose cavalar de 32 horas num avião, sem açucar, com destino à doce Sydney.
Assim como milhares de histórias que aqui se conectam, eu também tinha um bom emprego, um carro bacana, à prestações um apartamento, um cargo de responsa em andamento, o convite do melhor amigo para um chopp no happy hour, de uma amiga para o cinema no sábado a noite, um lembrete no imã de geladeira, um casamento em que eu seria padrinho, almoço no restaurante ao domingo, reunião para discutir a política de segunda, a insatisfação na cara, um frio enorme na barriga e uma vontade esmagadora de querer mudar. Sabe-se lá o que.
“Eu preciso aprender inglês!” Sim, esse era o impulso necessário para eu sair do país e de um namoro acomodado que nunca foi bem. Pelo certo da dúvida, eu queria fugir, corrigir, retroagir, sei lá, partir. Claro que em realidade eu precisava mesmo aprender esse maldito idioma, a exigência da língua era inerente lá no departamento e talvez em meio a crise inerente, eu fosse a bola da vez. Mas não é por isso eu que vim não. Não, não é por isso que a gente vem.
A gente vem para ser lixeiro, cleaner, lavar pratos e banheiros alheios, serviçal e aprendiz de pedreiro, construir novos muros e derrubar muralhas e barreiras de preconceitos que a vida por vezes estabelece. A gente vem para conhecer a gente mesmo, de quebra o mundo inteiro, e perceber que choro e o sorriso são sentimentos intraduzíveis e já não importa a cor da pele nem o formato dos olhos, todo mundo que chega é viajante nômade, estrangeiro, e vem com um medo absurdo do desconhecido, até enxergar no outro a clareza de um espelho, outros candidatos ao processo diário de recomeços, na mais genuína reforma da alma. E aí a gente muda e nem percebe. O endereço, a cara, a língua, as amizades. Muda o gosto, a rotina, o paladar. Muda de emprego, sentimento e atitude. Menosprezando talvez a chamada maturidade, mas dando valor real à nossa essência humana. Nessa torre de Babel a gente desordena a casa toda. E reordena a vida de um jeito só nosso, com coisa baratinha mesmo, detalhes e adereços comprados no Kmart. Porque aqui na Austrália a gente não é pobre nem rico. Todo mundo paga e recebe quase o mesmo salário.
A gente sente falta da família, o coração grita calado. A gente vibra com uma entrevista de emprego no Car Wash, a gente chora com os fogos na Darling Harbour. A gente se emociona todo dia. A gente vive! E daí se estamos errados?
A gente economiza uma grana para pagar o visto, porque o Sol que nasce na obra queima as costas, mas brilha também na praia em Manly, Coogee, Bondi. A gente vem falando “my friend” e volta falando “mate”, toma um goon, racha uma breja e vai dormir feliz demais, porque a gente sonha e não acorda nunca. A gente aprende a viver por aqui, porque lá no Brasil a vida segue ao contrário e todo mundo já reparou. Nossos amigos, família, gatos, cachorros, nossas jóias raras, continuam de alguma maneira por outros destinos sem a gente, e saber disso dói para car@lho. A ex namorada(o) fica noiva, se casa, depois engravida, tem filhos… Amores interrompidos se vão.
Depois de um algum tempo a gente já não se encaixa, nem lá nem cá. Tudo é nostalgia. Eu sou a saudade de quem? A gente se pergunta. E todo dia a gente se despede dizendo “até logo”, sem nem dar conta de que muitos “até logo”, terão a gravidade de um nunca mais.
A vida segue sem freio, também para outros cidadãos do mundo, ambiciosos criados nos mais distintos países, de cultura das mais variadas possíveis. Apesar disso, a vontade de vencer e abraçar o mundo nos úne. A gente respeita, deixa ser livre e ir.
A gente aqui sonha, nas poucas horas de sono, nas muitas horas de trabalho. Porque como diria um cara que lí na internet, a gente cansou de ver nossos sonhos se prostituindo na zona de conforto.
A gente divide quarto, ouve o ronco do outro, as vezes até coisas a mais, faz parte. A gente divide o pranto, o sorriso, o prato. O coração e a vida entre dois países que aprendemos a amar. Tudo para economizar na conta e multiplicar no afeto!
“Mãe, manda um beijo para a vó!” a gente grita no skype, “O pai não tem skype, sei que vocês quase não se falam, mas se puder, quem sabe, fala para ele que me preocupa saber que a saúde não vai bem.” A gente tenta falar de tudo que faz falta, enquanto um flatmate estrangeiro faz barulho na sala, na cozinha ou com o garfo, aí a gente se despede virtualmente com o coração apertado, porque no fundo a gente nem sabe se volta.
Mãe, diz para o povo aí que a Austrália é um país lindo. Diz que o dia aqui nasce primeiro, e eu assim como milhares de brasileiros espalhados pelo mundo, estamos escrevendo o futuro permanente dos nossos filhos, que no mínimo duas línguas falarão. Diz que nas minhas férias conheci praias belíssimas na Tailandia, ví o Sol nascer nos templos da Indonésia, ví a presença divina estampada em cada ser humano fantástico que encontrei no caminho, mas meu coração ardeu mesmo ao passar um tempo como voluntário cuidando de crianças num orfanato no Cambodia. Quem dera eu mãe, dando aula de inglês para os pequeninos, acredita?
A gente vive no futuro, mas isso não significa que a gente não carregue com apreço o que aprendemos no passado, e a saudade… Melhor nem falar.
A gente vive intenso, o inglês ainda do avesso, vai melhorar, prometo. Comprei alguns cangurus de lembrança, Tim Tam tava em promoção esses dias. Tenho tanta coisa guardada! Esse texto eu fiz porque já tava dando excesso de bagagem. Um dia eu levo, junto com as histórias que morro de ansiedade em contar deitado no seu colo, vendo seus olhos de admiração brilharem por mim e nem aí para malas esparramadas na sala. No dia em que o carinho nem permitir a bronca. Eu sei, é de orgulho, que te farei chorar.
Nosso mundo hoje é aqui fora, vivendo a plenitude de um sonho guardado no peito, o resto é amor que sobra, por demais. Viver é tão bom não é mesmo?! Então é assim que faremos em nosso reencontro. Retribuindo a vida com abraços apertados e beijos largos, combinado?! Só para fazer inveja ao tempo separado. Porque inglês aqui a gente tira de letra, o que mata mesmo é a saudade. Mas a gente paga o preço, a gente resolve a conta, presenteia com amor dobrado, o riso e choro acumulado, quando a gente voltar.